A herança da cultura afro-brasileira será celebrada com muita festa, nesta sexta-feira (7), no encerramento do ciclo Malungagem – A influência das macumbas na música contemporânea brasileira, no Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (MUHCAB), na Gamboa, região portuária.ebc Encontro no Museu Afro do Rio traz força das macumbas na MPBebc Encontro no Museu Afro do Rio traz força das macumbas na MPB

Esta será a terceira etapa da jornada do projeto, que começou em setembro no terreiro de tradição Jeje, Ilê Omo Iya Ade Omin, em Higienópolis, zona norte da cidade. O segundo encontro foi em outubro, no Centro de Cultura Única – União Umbandista Luz Caridade e Amor, na Pedra do Sal, na conhecida Pequena África, também na região portuária.

O cantor e compositor Alê, idealizador do projeto, disse que a ideia inicial era trazer as filosofias religiosas na música brasileira como forma de fazer uma ponte para apresentar o seu trabalho autoral, mas com a execução a malungagem tem se revelado mais que isso. Se tornou uma proposta de valorização e reparação simbólica ao aproximar a sociedade dos terreiros por meio da arte e do reconhecimento da sua força cultural.

“É dar a voz às pessoas que vivem essa cultura e muitas vezes nem entendem, como cultura, a convivência em espaço de terreiro, com as tecnologias de cura ancestral e com a comunicação com o invisível. Como artista apaixonado pela música, enxergo a musicalidade como uma cúpula que envolve a prática religiosa em si. A ideia de malungagem vem daí”, acrescentou o Yawô do Ilê Omo Iya Ade Omin e herdeiro das tradições Banto/Yorubá, em entrevista à Agência Brasil.

A palavra malungo, de origem banto, significa companheiro de viagem e, segundo Alê, o termo malungagem surgiu de um sentimento a partir do seu processo de letramento racial. “Malungagem, por definição, é a reunião através do encontro, daqueles que descendem dos ancestrais africanos que chegaram ao Brasil nos tumbeiros [navios que trouxeram de África as pessoas escravizadas para o Brasil]. É um encontro de celebração da ancestralidade afro-indígena genuinamente brasileira”, descreveu, informando que já pensa em transformar o projeto em uma tese de doutorado.

“O malungo eram os companheiros das pessoas que viajavam nos tumbeiros, africanos retirados violentamente das suas vidas, de suas culturas, de seus países e muitas vezes de etnias que não se comunicavam, que mantinham rivalidades culturais históricas, mas tiveram inteligência emocional de superarem isso no momento em que se viram vivendo aquele terror ao serem colocadas em um porão de navio e se transformaram em mercadoria”, completou.

O idealizador do projeto destacou ainda que embora ainda exista intolerância religiosa e a aspectos da cultura negra, até na forma de comunicação de pessoas do interior e de zonas rurais se percebe a influência dos africanos que vieram para o Brasil.

“Eu moro em local que é zona rural, aquele caipirês nada mais é do que a forma de que a primeira geração de africanos conseguia reproduzir o português de Portugal, então o racista ele fala a língua de preto, fala o pretuguês, que a maravilhosa Lélia Gonzalez cunhou muito bem”, comentou.

Alè contou que logo no primeiro encontro que ocorreu em setembro o tema da mesa de debates foi a influência dos candomblés na musicalidade contemporânea brasileira, com opiniões de yalorixás e babalorixás das três linhas principais de candomblé que se encontra no Rio de Janeiro: Jeje Angola e Ketu para saber como sentiam as referências aos orixás na Música Popular Brasileira (MPB), que segundo pesquisas, conforme, citou incluem ainda o sertanejo tradicional.

“A diversidade de trabalhos que vai do sertanejo tradicional ao rap citando a cosmologia. Eu estou no meio disso com o meu trabalho, o disco Igbá”, explicou.

“Igbá significa cabaça, é o vaso, recipiente onde a gente cultua o orixá, geralmente com pedras [sagradas] chamadas de otá” informou, acrescentando que na pronúncia a palavra de origem yorubá a letra g é muda.

>> Siga o canal da Agência Brasil no WhatsApp

Cada um dos encontros começou com o toque do Ngoma, tambor que atravessa o tempo, seguido de uma roda de conversa entre líderes de terreiro, artistas e pesquisadores, culminando com a música ritualística e poética de Alè.

Nesta etapa a roda de conversa será com nomes de destaque na cultura afro-brasileira contemporânea. A fundadora e Mestra Popular do Quilombo Aquilah, pesquisadora das tradições afro-brasileiras e ex-dirigente do Centro Cultural José Bonifácio (hoje MUHCAB), Hosania Nascimento;  a cantora sambista, professora e ativista pela valorização da mulher preta e da cultura de terreiro, criadora da roda O Samba é da Massa, Criss Massa; e a museóloga, dançarina e pesquisadora das culturas populares, integrante do Grupo Zanzar e cofundadora do Brincantes da Pedra Branca, Itana Gomes.

“Convidamos, preferencialmente, mulheres que trabalham com cultura popular, com os folguedos e com a musicalidade, cuja matriz são as macumbas para saber a influência do axé, na língua portuguesa, na culinária, na forma como a gente se veste no imaginário do Rio de Janeiro e fundamentalmente na música que sempre é a estrela principal”, apontou Alè.

Itana Gomes vai levar para o debate a influência da cultura dos terreiros não só pela origem religiosa, mas os que têm o conceito de pertencimento para relembrar a ancestralidade. A pesquisadora disse que apesar da presença ainda de manifestações de intolerância, tem notado o crescimento do interesse e de participação de público em apresentações culturais. Não quer dizer que não tenha intolerância, mas a gente tem conseguido um espaço maior no tempo atual”, afirmou, lembrando que um exemplo é a roda de danças populares que o Grupo Zanzar faz em frente ao Circo Voador, centro do Rio, toda última quinta-feira do mês junto com o Jongo da Lapa.

“Essas rodas acontecem em um território onde teve escravidão, onde teve um processo pesado para a população negra e onde a gente transforma o lugar de for em alegria, nem que seja naquele momento pontual para celebrar a vida”, disse.

A cantora Criss Massa, que já tem uma carreira que valoriza a presença dos cantos religiosos na música popular, contou que o samba não existiria sem axé.

“A batucada do samba é oriunda das batucadas dentro dos terreiros, das casas, com as barricas”, revelou, contando ainda que mostrará também na mesa de debates a interferência em outras batidas de setores musicais como o funk e o rap.

“Outras batidas que se tornaram conhecidas em relação a batida do axé para o samba, samba-enredo, samba de terreiro, samba pop e aí foi caindo para o batidão do funk entre outras coisas”, comentou destacando que as vezes a letra da música nem se refere a um orixá específico, mas a ancestralidade está presente.

“A gente usa muito o ijexá dentro do samba. A música Identidade do Jorge Aragão é ijexá e não fala nada de orixá. Fala de um preconceito, de racismo, mas não fala de orixá”, exemplificou.

Criss também percebeu uma mudança no preconceito em relação à cultura negra.

“Você consegue se mostrar melhor, consegue sair entre aspas do armário e mostrar o que realmente você é. Antigamente não se ouvia a pessoa dizer que era espírita, umbandista, candomblecista. Falava que era católico. Hoje não, as pessoas fazem questão de dizer o que são. Foi essa a liberdade e se nota isso através de várias rodas de samba, de movimentos, de pessoas que fazem dança e teatro. Já se consegue ver isso nas ruas, tem uma maior liberdade de expressão”, relatou.

Hosania Nascimento vai apresentar no debate o projeto do Quilombo Aquilah, na localidade do Tanque, em Jacarepaguá, zona sudoeste do Rio, de ensino dos cânticos afro diaspóricos nas escolas, como o Jongo nas Escolas e Baianas de Acarajé nas Escolas.

“É importante desde muito cedo, conscientizarmos as crianças o quanto os cânticos em Yorubá, os pontos de umbanda, as toadas do maracatu. Todas essas canções usadas pelo povo de matriz africana devem ser desmistificadas e serem olhadas sem demonização, não gosto de usar essa palavra, mas é importante, porque é o que acontece”, apontou.

“Acho importante levar para as crianças os pontos de umbanda como acalantos. A minha vida inteira de criança, até os meus 10 anos, as cantigas para eu dormir eram pontos de umbanda. Minha avó era indígena, umbandista, sou uma mulher preta, mas miscigenada porque o meu avô era português, minha avó indígena e minha mãe preta. Carrego comigo toda essa pluralidade de DNAs. Fui acalentada com esses pontos que não têm nada de demoníacos, pelo contrário”, defendeu.

Sobre o acarajé, Hosania afirmou que além de ser uma oferenda destinada a Iansã é um quitute da culinária baiana e da etnia preta.

“Você não precisa olhar o acarajé somente como um ponto religioso, como oferenda, mas sim como um quitute da gastronomia brasileira”.

Já no samba, Hosania destacou que embora existam as consideradas divas como Dona Ivone Lara e Leci Brandão, existem outras mulheres importantes que foram invisibilizadas como as conhecidas pastoras, de grande importância dos sambas enredos das escolas e que estão presentes nos projetos de pesquisa do Quilombo Aquilah.

“Nós fazemos um trabalho de pesquisa há muitos anos, eu como mestra popular, em cima da musicalidade afro-brasileira, a gente passa pelo samba, somos consideradas patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, o nosso grupo musical Pastoras do Aquilalh em homenagem as nossas primeiras damas do samba. Hoje temos divas reconhecidas dona Ivone, Jovelina, Clementina, mas as mulheres que estavam por trás dos cânticos dos homens como os que Ataulfo [Alves] que ele as batizou como pastoras foram as primeiras do samba feminino e eram as que escolhiam os sambas enredo que as escolas iam desfilar”, revelou.

A terceira etapa contará ainda com participações artísticas da dançarina, coreógrafa e criadora do projeto IntuiDanse, Maria Liberta, e de Tairini Cristine, conhecida como Poeta Tairini, MC, DJ e slammer paulista radicada em Ubatuba.

O encerramento do encontro será com um show de Alè. A produção do encontro é da Ubuntu Cultura e Arte em parceria com a Neggra Sim e resulta da conquista do edital Fluxos Fluminenses da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro.

As entradas gratuitas podem ser conseguidas no endereço https://www.sympla.com.br/evento/malungagem/3180847?share_id=copiarlink 

Programação:

14h – abertura  – Com DJ Tairini

15h/16h – Intervenção artística com a bailarina Maria Liberta  

16:30h / 18h  – Mesa de conversa 

19h / 21h – Apresentação -Alè e Banda